domingo, 30 de agosto de 2009

THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA

A CECÍLIA

Para Fernandinha Correia Dias


Se te beijasse,

seria breve a vida.

Por isso guardo o gesto para depois.

Depois viriam as esperas

todas ritmadas,

centradas em si mesmas

e nós, mudos, por dentro.

Teu motivo é a rosa,

perdida em tanto afã.

Ouve no vento a sibilante fala

e revela no poema

seu talho à mão.

Nenhum verso te preserva:

estás nua envolta em palavras.

Antes que chegue teu dia,

mais uma vez te esquecerão,

só para se lembrarem

– aflitos –

de que nunca morres

– como não morrem

os motivos da rosa.


Copacabana, 6/11/2001 – 4h00 – Véspera do centenário de Cecília Meireles


DÁ-ME

Para José Luiz de A. Santos


Dá-me o prazer

das pequenas coisas,

como se as tivesse tido –

mesmo sem poder tê-las,

como se as tivesse.


Botafogo, 26/04/2002 – 18h45


BABEL MINHA

O corpo vira cinza para que o fogo habite as páginas do livro.

Waly Salomão


Eu sei.

Já se foi o tempo

em que as ninfas azuis

se despregaram do lodo

e alçaram um vôo mais alto

que as copas das árvores.

Eu que contenho todos os segredos

da terra dentro das conchas,

abri o chão para que te deitasses

pela última vez.

Misturo agora tua sombra

ao negror da noite

que encobre os cálices e as bordas

dos copos, para sorver mais uma vez

a tua seiva.

Lê em tuas mãos os derradeiros

versos que escreveste.

Ergue-te, poeta, para o brado de teus ancestrais.

Estás aqui, abandonado por tua própria

essência: entre loas,

o arcano da morte te traz um renascimento

sem dor.

Babel minha,

desvela tua voz,

revela-nos a sorte.

Em tua bíblica túnica,

és o órfão de tua palavra.


Botafogo, 6/05/2003 – 7h59


1. MUITO


Vive o muito

onde nada há.

Lago côncavo

transbordado

vivos peixes de guelras fixas

estática luz sob o céu imóvel.

Anda e vive

sem ti mesmo –

a palavra muda

e não escrita.

Verte o nada onde nada há.


2. A BELEZA DE TEU GESTO


Nenhuma beleza repetirá teu gesto,

cálida fronte entre dentes.

Antes de me veres,

ouve os versos de meu silêncio.

Nenhum gesto conterá teu sonho.

Voz esquecida dentro da concha.

Ave mão palavra olvidada.

Onde me buscas, estou inteira.


Gávea, 6-16 de setembro de 2003


TANGER A HORA NUA

Para Pedro Almeida


Tangemos horas nuas

fontes repastos rebentos

Vivemos por sermos fartos

vastos largos imensos

Tecemos por dentro a hora

antes de termos medo

Fomos tão pequenos –

primeiros entre os primeiros

Despimos assim os mitos

vértebras lápides heras

E entre palavras vivemos:

estes ermos longos e densos.


Rio, 10/10/2003 – 23h42

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