A CECÍLIA
Para Fernandinha Correia Dias
Se te beijasse,
seria breve a vida.
Por isso guardo o gesto para depois.
Depois viriam as esperas
todas ritmadas,
centradas em si mesmas
e nós, mudos, por dentro.
Teu motivo é a rosa,
perdida em tanto afã.
Ouve no vento a sibilante fala
e revela no poema
seu talho à mão.
Nenhum verso te preserva:
estás nua envolta em palavras.
Antes que chegue teu dia,
mais uma vez te esquecerão,
só para se lembrarem
– aflitos –
de que nunca morres
– como não morrem
os motivos da rosa.
Copacabana, 6/11/2001 – 4h00 – Véspera do centenário de Cecília Meireles
DÁ-ME
Para José Luiz de A. Santos
Dá-me o prazer
das pequenas coisas,
como se as tivesse tido –
mesmo sem poder tê-las,
como se as tivesse.
Botafogo, 26/04/2002 – 18h45
BABEL MINHA
O corpo vira cinza para que o fogo habite as páginas do livro.
Waly Salomão
Eu sei.
Já se foi o tempo
em que as ninfas azuis
se despregaram do lodo
e alçaram um vôo mais alto
que as copas das árvores.
Eu que contenho todos os segredos
da terra dentro das conchas,
abri o chão para que te deitasses
pela última vez.
Misturo agora tua sombra
ao negror da noite
que encobre os cálices e as bordas
dos copos, para sorver mais uma vez
a tua seiva.
Lê em tuas mãos os derradeiros
versos que escreveste.
Ergue-te, poeta, para o brado de teus ancestrais.
Estás aqui, abandonado por tua própria
essência: entre loas,
o arcano da morte te traz um renascimento
sem dor.
Babel minha,
desvela tua voz,
revela-nos a sorte.
Em tua bíblica túnica,
és o órfão de tua palavra.
Botafogo, 6/05/2003 – 7h59
1. MUITO
Vive o muito
onde nada há.
Lago côncavo
transbordado
vivos peixes de guelras fixas
estática luz sob o céu imóvel.
Anda e vive
sem ti mesmo –
a palavra muda
e não escrita.
Verte o nada onde nada há.
2. A BELEZA DE TEU GESTO
Nenhuma beleza repetirá teu gesto,
cálida fronte entre dentes.
Antes de me veres,
ouve os versos de meu silêncio.
Nenhum gesto conterá teu sonho.
Voz esquecida dentro da concha.
Ave mão palavra olvidada.
Onde me buscas, estou inteira.
Gávea, 6-16 de setembro de 2003
TANGER A HORA NUA
Para Pedro Almeida
Tangemos horas nuas
fontes repastos rebentos
Vivemos por sermos fartos
vastos largos imensos
Tecemos por dentro a hora
antes de termos medo
Fomos tão pequenos –
primeiros entre os primeiros
Despimos assim os mitos
vértebras lápides heras
E entre palavras vivemos:
estes ermos longos e densos.
Rio, 10/10/2003 – 23h42
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